18.6.08

Os vilões de cada lugar

Muita gente reclamou da postura da Globo em não exibir o beijo gay no final da novela Duas Caras. Eu mesmo achei a atitude da emissora um tanto quanto ridícula, pois é evidente que o tema já se naturalizou a ponto de não deixar dúvidas de que não haveria qualquer grande choque negativo. Quem pedia, aliás, era a opinião pública, juntando-se a elenco, diretor, autor. À época da decepção generalizada, li ou ouvi por aí o argumento de que em diversos países - especialmente nos EUA, que é tradicionalmente tão conservador - a TV já se flexibilizou e exibe cenas de beijos, carícias e até mesmo sexo entre gays.

A questão é que a ética destas produções é outra. Todos nós sabemos o grau de sofisticação da teledramaturgia americana recente, que tem explorado diversos públicos, vez ou outra se aventurando em retratos bem realistas (no que concerne a um realismo possível na ficção americana). Já no Brasil, a história é outra. Pode-se falar muito mais sobre gays e beijo por aqui. Não importa. A ética da telenovela carrega um pouco de hipocrisia, sim, mas que diz respeito à sustentação de seu universo ficcional. No seriado americano, o beijo é um evento que remete a uma simbologia menos densa. Na novela, beijo é ideal consagrado, relacionado a um idealismo romântico remanescente do folhetim. Véu e grinalda permancem elevados sobre uma aura apoteótica. Mesmo com a inserção de elementos mais realistas, a base estrutural (e nesse sentido, é estrutura mesmo, é estereótipo) da ficção novelística precisa de certa dimensão rasa e previsível para acontecer. De outra forma, não seria novela.

Um beijo gay numa novela, neste caso, teria muito mais força do que qualquer beijo em qualquer seriado americano. Porque o beijo, por lá, em geral não é muito mais que um beijo. Ou, mesmo que seja, não representa necessariamente a consolidação dos valores tradicionais da família e da solidez da eternidade cristã - no máximo, a certeza de que os personagens serão felizes. Por aqui, por ser um evento único, o beijo gay ou banalizaria a figura dos gays - no caso dos personagens serem de estereótipo "promíscuo", "mundano" - ou elevaria estes personagens à figura vocacionada do desejo de Deus. O que não acontece é a fuga do estereótipo. Se acontecer, a novela acabou e deu origem a outro produto televisivo.

O que acontece, então? Por enquanto, ficamos sem beijo, mas não sem as transformações nos valores da sociedade. A desconstrução do gênero novelesco talvez abrisse as portas para mudanças mais velozes, quem sabe. Atualmente, porém, ele é um veículo de discussão política, e gay, negro, crime, felicidade, deficiência, solidariedade, casamento serão temas recorrentes até que ele não se sustente mais, derrubado pela emancipação de outros valores. O que é certo é que os beijos entre pessoas do mesmo sexo na televisão americana não representam, necessariamente, uma tradição mais democrática que a nossa. No máximo, talvez, uma distribuição mais democrática da programação televisiva, em busca de uma variedade maior de públicos - questão mercadológica? Aqui, ainda tentamos resistir ao império dos oligopólios cristãos, conservadores, noveleiros da televisão aberta.

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