O fazer inventariante de Werner Herzog em A caverna dos sonhos esquecidos não me parece tão distante daquele empregado por Jean-Luc Godard em sua própria arqueologia da imagem, cuja marca maior na minha memória são suas pontuadoras Histórias do Cinema. Há o desejo de encarar um espírito perene que atravessa a história e inscreve seus rastros em sua matéria - paredes de gruta, negativos e positivos, écrans, VHS, HDs -, bem como a consciência da planaridade das superfícies de projeção, a urgência de que se filme a própria tela e o uso artificioso das tecnologias que, feitas como armadilha, vestem saias justas na ideia de que o cinema está edificado como testemunho definitivo.
Godard, de um lado, provoca o testamento de imagens agora tornadas perecíveis, finitas. Até onde vai a história?, questiona, provavelmente a ser desta forma bastante culpado pela paranóia de um certo fim do cinema que o estocou em videolocadoras e assombrou os anos 1980. Herzog, de outro lado, partilha de um espaço-tempo crente no revigoramento da imagem como artefato maior. Num tempo de cinema de afetos, ele vem reiterar a necessidade de que a imagem, através da história, reencontre o homem, e nele se abrigue, para assim permanecer e se prolongar em nós.
9.7.13
8.7.13
Usar o 3D para filmar o plano
A caverna dos sonhos esquecidos (Werner Herzog, Canadá/EUA/França/Alemanha/Reino Unido, 2010)
Ao usar o 3D em A
caverna dos sonhos esquecidos, Werner Herzog parece ostentar com um grito a
consciência de nosso deslize ocular: o olho teima em acreditar que o écran, que
exibe filmes – ou quadros –, deixa-se contaminar pela profundidade. Quando é,
na verdade, tomado por superfície.
Se o
cineasta inventa este filme para descobrir um certo tipo de tela, no caso as
pinturas rupestres encontradas por arqueólogos na Caverna de Chauvet, França, procede
com a subversão desta noção comum, especialmente quando atrelada ao uso do 3D:
não, o cinema não é um território de infinitos em perspectiva, nos diz, mas da
composição de texturas, impressas pelos desenhos da luz.
Em A caverna..., a tridimensionalidade própria destas telas
paleolíticas, que tinham em sua matéria as ofertas e limites estéticos das
paredes acidentadas da gruta, ganha de fato uma perspectiva tátil, uma vez que
a reprodução da experiência de contemplação, instituída numa galeria asfixiada
por estalactites, é transportada com relevo ótico similar ao da presença sem câmeras.
O olho, percebe-se portanto, não busca os corpos que se movem pelo campo aberto
pela lente, mas as bordas bidimensionais da imagem, onde as pinturas são
investigadas. É como se os quadros de cinema tivessem paredes – e a câmera
resolvesse filmá-las, em vez do campo aberto à ação dos corpos.
Surge, neste sentido, a
ressonância de um espírito modernista que, com o artifício quase sempre cego do
3D, grifa a fatal planaridade da imagem, deixando entrever seu próprio
artifício canastrão de subvertê-la e atingir um estado de permanência efetiva
no mundo filmado. Como se não fosse, pois então, um mero écran.
Neste apego às bordas destes
quadros emparedados, Herzog nos incita, pela imagem mas também com o auxílio de
um off cheiroso a filosofias platônicas, a distender nossa experiência pelo
espaço-tempo. E este é o seu segundo e maior grande truque: devemos agora
desconsiderar o 3D e nos transportar para o espírito dramático condensado nas
próprias pinturas rupestres. A visão desta imagens arcaicas e tão mirradinhas
perto do circo que é ver as estalactites quase nos tocarem é, embora estática
enquanto matéria, também fluida, narrativa e dramatúrgica se o cinema é algo
que transcorre no campo fabulante da mente. Se o fora de campo encenado puder existir
naquilo que é afetivo, que nos faz históricos e humanos.
É curioso que um dos arqueólogos
entrevistados revele ter, ele mesmo, trabalhado no circo antes de virar
cientista. Não só o 3D é um brinquedo circense como também o é o jogo de luzes
e sombras empreendido pelas lanternas da equipe de filmagem no interior da caverna, que simulam lá o
mesmo movimento do fogo pré-histórico dentro da imensidão escura, a encadear e
emprestar movimentos ilusionistas àqueles rabiscos de leão e urso. Bem como é
circense, enfim, a noção de cinema de atrações que representa o achado
arqueológico primeiro do próprio cinema, uma arte de feira cujo passo último
capitalizou o fetichismo das três dimensões.
A despeito de tantas nostalgias
atravessadas pela história do homem e da imagem e de seu emprego como
artifícios, Herzog parece crer enfim na precedência de um espírito nobre, cuja imaginação,
capaz de viajar pelos seus próprios afetos, tem corpo para desbravar a presença
em outros espaços e em outros tempos, seja através de foras de campo, paredes
de quadro, paredes da história.
7.6.13
20.3.13
Todo filme é uma crítica frustrada
Este jogo semântico parece
esconder – mas também exibir com um desfoque sob efeito de cócegas – a raiz
mais profunda de uma prática de produção muito miscigenada de dizeres sobre o
mundo, do qual a obra de Kleber parece servir como um exemplo de vísceras
expostas. Ao menos se tomarmos como esse mundo simbólico um palco compartilhado
de encontros politizados – e politizantes – entre formas de ver e dizer. E a
ironia da camiseta toma os contornos de um aceno subreptício, uma falácia que
brinca consigo mesma, um vocês não estão entendendo nada com alguma graça.
Desde que
começou a circular em festivais – mas, especialmente, quando chegou ao circuito
comercial – O som ao redor deu
magnitude mainstream à voz de Kleber, a ideia de voz aqui entendida como um colocar-se perante. Na esfera
acadêmico-historiográfica, seu primeiro longa de ficção passa já a ser um caso
empratileirado entre os grandes ou determinantes. No jornalismo, um noticiável
pop bom de venda. Quando se trata de produção de ideias – e o filme contaminou
de ideias ebulitivas todos os corredores que abriu à sua frente, abriu porque
contaminou e contaminou porque abriu –, podemos suspeitar de certas causas
e consequências:
Parece haver em torno deste filme
o desconcerto daquilo que é situação, situação que se expressa nas formas
recorrentes de fomento e de percepção de imagens e narrativas. Ou, talvez, de
formas de olhar o Brasil, o mundo, o próprio cinema e também as instâncias
expressas do exercício crítico que atravessa essas formas de ver e
descrever(-se). O som ao redor parece
ser maior – e maior – porque, uma vez lançado e visto, instaura um jogo das
cadeiras com as expectativas de certa sensibilidade previsível (lançando mão
aqui da ideia de cinema político de Jean-Louis Comolli). Estão, meses depois,
ainda tentando lidar com isso.
E aí
lembramos novamente da camiseta. Nós, antigos leitores de Kleber, com algum
debate ou discordâncias ótimas, podemos talvez perceber, em seus filmes – e derradeiramente
em O som ao redor –, o desdobramento
de uma postura crítica que se realizava com ferramentas simbólicas muito
familiares de um universo pessoal (porque posto em público) de referências e
métodos. Se fizermos um julgamento que encontra afinidades em leituras de
Jacques Rancière, perceberemos com algum afeto que tanto em seus filmes quanto
em sua bibliografia de crítica de cinema há um esforço ético afim no que se refere
à produção de imagens – sendo palavras e imagens agentes irmãos na produção de
outras palavras e outras imagens.
São sensibilidades que produzem a
ironia um tanto combativa de certas camisetas, uma postura cinéfila (no sentido
de ver, filmes e o que mais quer que seja, como um empreendedor) e uma
percepção do mundo atravessada por essa postura, que carrega a energia canônica
de Antonionis e Leones, mas também palpitações perante imagens incidentes e um
embrulho no estômago frente a certas formas marcadamente predatórias de uma
política de imagens, uma política tantas vezes espetacular.
É só lembrar o cinismo cúmplice
com as formas comuns de produção de imagem jornalístico-televisiva em Recife frio ou a relação
erótico-fetichista como eletroeletrônicos e TVs em Eletrodoméstica: Kleber sai do espetáculo para rir do espetáculo e
voltar ao espetáculo para fomentar um espetáculo mesmo, mas também outro, jogando
os jogos a furtando peças. Afinal, uma camiseta é um refúgio pop com a solidez
urgente e ambivalente de um Che Guevara ou de um Joey Ramone. Foi feita para
ser vestida e para ser vista, assim como uma máquina de lavar roupa.
Essas
manifestações predatórias de mundo, no caso que concerne ao engajamento visível
de Kleber crítico-cineasta, produtor de imagens e produtor de imagens, respectivamente
por texto e por imagem, mas também por imagem e por texto, são as formas
especulativas de um espetáculo bilionário que se expressa por cidades tomadas
por caros cercados privativos apartados de uma ideia mais democrática de
partilha – ou, trocando apenas um termo, imagens
tomadas por caros cercados privativos apartados de uma ideia mais democrática
de partilha. Um sintoma bifurcado de um mesmo estado de mundo capitalista,
sobre o qual o cinema de Kleber (usando editais, textos, câmeras, ou encenações
em diversos dos âmbitos metodológicos de uma política de cinema) vai incidir.
Não à toa,
os efeitos de O som ao redor, uma vez
presentes nas nossas filmografias, sintaxes, prefeituras e jornais, são capazes
de causar incômodo simultâneo (mas nunca desarticulado) nos imaginários pretensamente
progressistas de empreiteiros das cidades e de empreiteiros das imagens, vide a
polêmica, palavra empreiteira, entre o cineasta e um cara aí da Globo Filmes
(ou uma outra, recente, travada com/por um jornalista-blogueiro
pernambucano). São estratégias sempre singulares de acenar uma forma de ver e
dizer, mas aparentadas por um posicionamento contaminado por imagens de um
cineasta que vê e um crítico que faz filmes.
Da primeira vez que vi O som ao redor, há um ano, me senti talvez assistindo a um texto de Kleber, sem me deter a obviedades semiológicas de que um texto era tanto um reduto de imagens compartilhadas quanto o é a imaginação cinéfila. Vi um filme claramente escrito nos parágrafos-esquetes que lhes eram próprios durante o exercício deliberado da crítica, enquanto a empregada sexualmente satisfeita cruzava Maeve Jinkings de bicicleta em uma frase aparentemente escrita por um Robert Altman hesitante. Daí percebia a mesma velha ironia – como a da tal camiseta –, particularmente em um comentário inesquecível e muito delicioso de Kleber sobre Alvin e os esquilos 2 ou 3, no qual crianças eram depositadas num shopping, e lá na tela estavam também as crianças e suas empregadas em seu bambolê-senzala depositadas na imagem. Fosse a comunicação torta dos habitantes da rua uma cena à L’avventura ou mais um esperado caderno de sexta-feira em que uma crítica de cinema foi escrita sobre uma reunião de condomínio feita para o YouTube. O protagonista de Gustavo Jahn, afinal, um personagem largamente apontado como alterego de Kleber pronto para ironizar, com as ferramentas ficcionais de uma empresa cinéfila, um ao redor feito para decantar com verve crítica e um sorriso no canto do rosto.
Depois, vi
o filme mais duas vezes. Por um ano, vez ou outra vinha à mente (vestido com a
camiseta).
A ironia da
camiseta, se formos nos manter na ordem redentora do pragmatismo, é a de que um
filme se dilata e transforma discursos em imagens do circo primeiro que é o
cinema: ser um filme do tamanho de O som
ao redor é abrir corredores em outros espaços equilibristas de mundo
condensado com a grandiloquência de salas de cinema. E o desequilíbrio das
antigas declarações cinéfilas de Kleber não encontra mais um jornal de lides
robotizados como clausura a ser desafiada, mas um catálogo de imagens reiteradas
em circuitos por onde correm também os esquilos, os empreiteiros e o cara da
Globo. Os corredores abertos por O som ao redor deixam como rastro uma estratégia
muito desconcertante (de novo) de certa expressão cinéfila que encontra, na
trincheira de sua própria forma de perceber o mundo – também especulativa e,
por que não, espetacular –, versão particular de um vigor renovado para a arte
crítica.
15.3.13
19.4.09
Entra em cena o off
A Carreira de Suzanne (Carrière de Suzanne), de Eric Rhomer, 1963, prosa cinematográfica. Às vezes o excesso poda, às vezes cabe.
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