25.6.08

As palmas (e outros mitos)

Texto publicado no Jornal do Commercio, na quinta-feira, 19 de junho.

As grandes controvérsias da crítica de cinema normalmente recaem sobre um mesmo sistema extremista e radicalizado de comentários. São exemplos que costumam gerar, de um lado, a idolatria incondicional e, do outro, a verborragia de revoltados. Para o bem ou para o mal, a referenciação exagerada destas obras lhes veste com a mistificação certeira de que, incontestavelmente, fizeram história.

No cinema nacional, um dos maiores embates remanesce do momento mais transformador da produção cinematográfica brasileira – transformação que, no mundo de uma possível arte, reflete-se em rupturas, descobertas e controvérsias. Trato da polarização entre o cinema novo e um chanchadismo pouco promissor.

Ainda ressurge hoje o eco mítico de uma das maiores surpresas da produção brasileira. Em 1962, um grande galã do cinema industrial, importante personagem no portfólio das antigas produtoras Cinédia, Atlântida e Vera Cruz, apresentaria seu segundo longa-metragem como diretor e conquistaria a Palma de Ouro. Anselmo Duarte, resquício do falido projeto de consolidação de uma Hollywood no Brasil, abandonava os holofotes de um cinema antiquado e burguês para estrear na dimensão sagrada do cinema autoral – o espaço da homenagem à transgressão.

Os opositores da idéia certamente se debateriam com o notável destaque deste astro chanchadiano. Aliás, uma olhada cautelosa pode assustar até os críticos mais frios da atualidade. O pagador de promessas é contemporâneo de verdadeiros clássicos do cinema, dos quais tomou o principal prêmio do Festival de Cannes. Películas como O anjo exterminador, de Luis Buñuel, Cléo das 5 às 7, de Agnès Varda, e O eclipse, de Michelangelo Antonioni estavam na mostra competitiva daquela edição.

Meio século depois, a força de uma consciência histórica ainda traz inquietações. Seria Anselmo Duarte o cineasta de apenas um clássico do cinema? Qual a medida de sua obra? Qual o tamanho de O pagador de promessas? Se a metrificação do feito histórico é inútil, a insegurança frente a sua importância desloca a obra no tempo, desorienta o olhar analítico. Cá estou eu enxergando o filme sob a perspectiva do mito nacional, a incursão venerável, a vitória sem espaço para pirataria. E me empobrece a idéia de que cheguei à discussão cinqüenta anos atrasado.

Para além de um debruçamento pejorativo sobre o conceito de chanchada, vale explorar com mais consistência o cinema de Anselmo Duarte. Até Glauber Rocha, que o repudiava, admitiu que sua obra era uma exceção em meio à baixa qualidade da produção chanchadista. Os filmes de Anselmo costumam apresentar eficácia narrativa notável e argumentos mais audaciosos que a média. Em O pagador de promessas, estes aspectos atuam num intercâmbio particular com as questões históricas que urgiam na época, aproveitando-se de categorias, mitos e símbolos mais ou menos solidificados: a opressão do colonialismo no Brasil, a excentricidade (por que fora do centro) do cinema latino-americano, a revelação do Brasil sobre um imaginário europeu do subdesenvolvimento ou a nobre superação dos oprimidos.

Exemplo desta teia paradigmática é a própria lógica mimética da obra. A partir do percurso do protagonista, Zé do Burro, surgem elementos de uma cultura nacional que tenta superar sua própria condição histórica de opressão. Os negros, o candomblé, os orixás, o Nordeste brasileiro buscam a emancipação e a miscigenação destes símbolos reproduz sincretismos. Do outro lado, a universalidade do discurso, consolidada a partir de personagens esquemáticos, é sustentada a partir de estereótipos referentes à Igreja Católica, à imprensa aproveitadora, à prostituta e aos mecanismos de poder.

Esta perspectiva política do enredo, original de Dias Gomes, é fundamental para que se sustentem escolhas estéticas. Anselmo Duarte, partindo de representações de um exotismo, articula pontualmente cada aspecto da direção, como que tecendo um projeto de clássico. Por outro lado, aproveita-se da progressão dramática do texto original, que, em sua gênese, contém o argumento de uma narrativa absolutamente eficiente. Assim sendo, o olhar atento do cineasta se utiliza de referências à narrativa épica (a própria Paixão de Cristo), ao humanismo de marcos recorrentes como a obra de Frank Capra ou à busca pela motivação crítica de um neo-realismo. Desta forma, personagens, em geral, reconhecíveis pelo imaginário dos públicos, parecem apoiar um projeto de reinvenção do multiculturalismo a partir da própria diretriz estética do filme.

A obra, portanto, tem apelo universal e referencial localizado. Explora a folclorização das origens (porque periféricas, e desconhecidas) com destino à apreciação generosa dos críticos internacionais, sedentos por representações inéditas do mundo. Nada estranho. Este tipo de abordagem cultural é até hoje reconhecível em diversos filmes nacionais, como Bye bye, Brasil (1980), de Cacá Diegues, ou Baixio das bestas (2007), de Cláudio Assis. Mesmo assim, enquanto a estetização de imagens regionalistas produz, nestes filmes, uma glamourização mais ou menos desgastada, no de Anselmo a versão das periferias estava fresca, era iminente do ponto de vista político, além de carregar consigo a intensidade propícia para a construção de uma estética de vanguarda. Na prática, porém, a revisitação a estas formas de manifestação cultural se aproveitou de formatos já bastante conhecidos para estrear uma versão de mundo periférico sob a carcaça hegemônica de um cinema-padrão, perfeito. No espaço diegético, digressões ao cinema tradicional, por outro lado, como as filmagens em locações, vinham reforçar a eficácia da subversão temática.

Para quem se dirigiu O pagador de promessas? No Brasil ainda democrático de João Goulart, o reflexo de um esquerdismo (que quase desabava) na conflituosa cena política mundial era convidativo para a rentabilidade das culturas marginais. Muitos discordam até hoje do prêmio levado por O pagador de promessas. Mas é justamente nos dias atuais que corremos o risco de falhar em nossa historicidade, tornarmo-nos opacos e distantes. A obra de Anselmo é uma obra maior que a crítica de uma estética. No ano de seu lançamento, ainda que o cinema novo se dirigisse ao topo da experimentação crítica, o chanchadismo se desdobrava em uma de suas poucas formas amplamente capazes de se comunicar. Tanto que se tornou mitológica.

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