10.6.08

Jornalismo do umbigo

É evidente que certos repórteres de televisão sofrem de uma síndrome de estrelismo. A própria imagem da imprensa onipresente e onipotente fortalece o fato, inevitavelmente. A condição é meio perigosa porque termina comprometendo algum resquício de naturalidade que haja entre imprensa e objeto de imprensa - no caso, jornalista e fonte. Após acompanhar, como assessor, uma reportagem especial para o Jornal Hoje, essa impressão se desdobrou e eu não consegui segurar o desdém. Um desdém divertido.

Alguns poderiam estranhar essa forma de chamar os pobres dos entrevistados. Decerto que eles não deveriam ser tratados como simples objetos, é verdade. Deveriam fazer parte do diálogo ideal que tanto se preza na busca por um jornalismo consciente, crítico, blablabla, posicionados como os sujeitos do que contam, do que vivenciam ou do que quer que seja que exerçam para serem fato jornalístico. Numa reportagem especial, aliás, que não conta com agravantes como a correria pelo factual e pelo instantâneo, o mais que ideal é que as abordagens fossem mais complexas, passíveis de uma transformação acionada pelo que está na frente das câmeras e dos spots de luz.

Acontece que alguns jornalistas, categoria seleta entre as estrelas da pauta, terminam por ser cotados para viver o bem bom da reportagem especial aparentemente despretensiosa e, sobretudo, autoreferencial, como se treinassem para Glória Maria. Aliás, tomando o exemplo da dita cuja, que foi tanto, mas tanto, que resolveu sair de férias de vez. Claro, o comum é que estes repórteres sejam pessoas influentes, confortáveis e institucionalizadas enquanto entertainers de um jornalismo bem lugar comum. Assim, em certas noites de segunda (as do Big Brother, talvez), Pedro Bial e Hebe cabem no mesmo saco. Ou Hebe é uma figura menos incômoda.

Ex-mulheres do tempo, ex-modelos, ex-atrizes. A figura da mulher está mais suscetível a ser fisgada pelo acervo inconográfico da cultura pop jornalística, provavelmente pelo fato de que, em meio a um discurso massificado, as mulheres são ainda, em boa parte (talvez a genitália, as nádegas e o busto), objetos sexuais, inclusive de terninho. Ou seria o casamento com magnatas midiáticos o fator responsável pela absorção dos astros (ou astronaves) femininos do telejornalismo? E ainda o casamento com diretores, ou editores ou... jornalistas especiais. Talvez os mais bem pagos de cada estado. Porque o fenômeno não está restrito à gíria caraoquês, morô? Em Pernambucano também tem.

Enfim, back to the start. Vou contar um pouquinho pra ilustrar. Primeiro chega a tal repórter com sua trupe e equipamento volumoso de dar preguiça. Não consegui não reparar nas jóias cintilantes, imponentes. E nem nas espinhas, já que o rosto estava coberto por um reboco cosmético. A dita, vamos chamar de J. (de jornalista, e não de Juliana ou de Janete) começa a fazer a apuração, de leve, como deve ser. Faz os contatos, como deve ser, observa o local, como deve ser. Tudo como deve ser. Mas, diferentemente da acne e da cor natural do cabelo, dá pra notar facilmente o ego carregado no umbigo.

J. definitivamente não escorrega na técnica, e a reportagem final - desde as entrevistas nas sonoras à passagem às imagens - é o cúmulo do deve-ser. E porque o umbigo está na cabeça e as jóias, o pó e a pompa estão como devem ser, há um clima de subserviência das fontes, uma humildade, uma paciência e uma passividade que não deveriam ser de forma alguma. A impressão que tive é de que a reportagem fora previamente escrita, como se a narrativa já fosse desde sempre como o deus das narrativas criou e J. tivesse apenas o trabalho de lapidar, contendo ou exacerbando os espaços onde cada personagem - e cada fórmula de informação - deveria estar. Os entrevistados estavam evidentemente encantados com o momento e a promoção do brilho em rede nacional, como se fizessem parte de uma peça publicitária. O briefing ali continha algo algo como aquela velha história de superação social. Como se a superação fosse sempre o que sempre deveria ser.

Assim, a entrevista versava sobre as questões da tal superação ("e você está feliz?", "o que mudou na sua vida?", "é bom?", "a renda aumentou, né?", "está satisfeito?", "você sente orgulho do seu trabalho?") e as respostas, futuramente editadas em segundos, traziam consigo aquela carga de emoção que paira sobre qualquer tipo de transformação social correta: lágrimas e alguns "sim, sinto orgulho porque...", "sim, minha vida mudou porque..." - brilho nos olhos.

Mais do que provável, J. dá muitos sorrisos. Mas compõe o arquétipo da estrela ambígua: frente às câmeras, a simpatia é tremenda e há um esquematismo maternal em sua voz - daquele que admira, confia e apóia. Por trás das câmeras, há uma seriedade (e uma ironia seca) que só cede espaço à simpatia funcional, suíça. J. está mais preocupada com a maquiagem, que retoca freneticamente, que com as pessoas e passa vinte minutos para enfim fazer a passagem, reclamando e mandando reestruturar a iluminação. Ninguém deve se preocupar com as pessoas, isso acontece por opção ou por pressão. Mas é divertido observar como J. é evidentemente fake no amor ao próximo, copiando atitudes retiradas de lugares tão óbvios que eu fiquei chocado em conhecer o Padrão Globo de Qualidade encarnado, ali na minha frente.

Nos intervalos, ou quando cinegrafista e técnico trabalhavam nas imagens, pude trocar palavras com J. Obviamente surgiram alguns momentos ótimos. A filha, de 15 anos, queria fazer Moda, e ela "morria de medo". Segundo J., "o que o pai quer o filho não faz". Enfim, ela resolveu agora fazer designer (sic), o que a deixou "muito mais tranqüila". Para J., "ela deveria seguir carreira de tecnologia, que não falta emprego". O negócio é "não fazer curso pra ficar desempregado". Achei no mínimo irônico ouvir isso de uma jornalista, certamente umas das cinco que ganha o maior salário no estado. Mas mais curioso foi ela falando isso na frente de um monte de gente semi-desempregada, que dá a cara pra ter o que comer - aliás, um comentário que tinha muito a ver com sua pauta.

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