9.9.08

Coutinho e Marcinho, o traficante da Indústria Cultural

Tô a cada dia mais impressionado com a obra de Eduardo Coutinho. O que vi ontem foi Santa Marta: Duas Semanas no Morro, um doc de 1987, o primeiro que Coutinho filmou em favelas do Rio de Janeiro. É neste momento particular que o cineasta começa a delinear o estilo que consolidou ao longo dos anos 90, a escolha de fundamentar suas narrativas em histórias pessoais, desenvolvendo o embate entre o individual e o sociológico a partir de relatos particulares e fugindo ao máximo de uma montagem que direcione a construção de sentido de valor - máximo que aqui ainda não atingiu, já que ainda submete seus personagens a uma premissa temática - neste caso, a vida e a violência nas favelas.

Uma das cenas primorosas (e, em se tratando de Coutinho, este tipo de comentário quase sempre diz respeito à direção que toma o discurso dos personagens) é a do grupo de jovens que conversam sobre suas perspectivas de futuro, notavelmente destoantes de suas expectativas. Os adolescentes contam que queriam ser professores, advogados, jogadores de vôlei, mas que sabem que é muito difícil e desacreditam de qualquer possibilidade. Lendo um pouco sobre o filme, descobri que um deles é Marcinho VP, traficante carioca preso no começo da década e assassinado em Bangu 3 há cinco anos. Marcinho VP era tido como "anti-herói do tráfico" pela imprensa mais à esquerda e por uma nata de cariocas da "intelectualidade" (tomando a palavra da impresa), como João Moreira Salles, que pagava uma mesada a Marcinho pra que ele se afastasse do crime por um tempo e escrevesse um livro. Marcinho levava a transformação social no discurso e, dizem, leu Casa-Grande & Senzala, textos de Marx e conteúdo clássico da esquerda. Até a Veja (num tom que diz A vida no inferno: Pesquisa põe abaixo o mito do bom bandido encarnado por Marcinho VP) publicou uma entrevista em que ele diz ter lido Camus, pra ele uma espécie de gênio profeta das condições da vida no morro. Tipo um Robin Hood letrado e messiânico no novo milênio.

Marcinho ficou primeiramente conhecido pela opinião pública quando, em 1996, negociou com Spike Lee a segurança da equipe de filmagem de They Don't Care About Us, aquele clássico clipe de Michael Jackson que se passa no Brasil, parte filmado no Morro de Dona (ou Santa) Marta e parte no Pelourinho, com o Olodum. Na época, Marcinho era considerado o "dono da favela" pelos moradores do local e teve o poder de dar autorização para a equipe fazer as gravações. Mas a história mais curiosa é a de como ele se tornou mito. Engatado na vida cultural carioca, dava diversas entrevistas, até que O Globo publicou uma frase do tipo "não bebo, não fumo, meu único vício é matar". Marcinho foi perseguido logo em seguida, considerado então um dos homens mais perigosos do tráfico no Rio de Janeiro. Tempos depois, ele afirmou que nunca tinha dito aquilo (realmente, algo não muito inteligente de se dizer a um jornalista). Na verdade, ele tinha dito "meu único vício é mato" - maconha, para leigos da linguagem fluminense. Vai saber.

Enquanto isso, envolvido em amizade com Kátia Lund, Salles e uma companhia de cineastas, Marcinho participava de outro documentário, Notícias de uma Guerra Particular, e tinha sua história reconstituída por Caco Barcellos em "Abusado, o dono do Morro Santa Marta". No momento em que Marcinho era preso, Salles era processado por favorecimento pessoal, pela bolsa que pagava. Lançado o livro de Barcellos, Marcinho foi imediatamente assassinado - certamente por outros líderes do Comando Vermelho, que não gostaram das revelações feitas ao jornalista. Barcellos se sentiu culpado e prestou seus pêsames públicos. Moreira Salles apareceu no enterro de Marcinho com Walter Carvalho e foi condenado a pagar multa pela amizade descolorida. A cena de Marcinho no filme de Coutinho adquiriu outra dimensão histórica - a partir de então, com seu personagem resgatado, sobressaindo-se à própria lógica discursiva do filme (algo como um flash seria em Theodorico, Imperador do Sertão, outro do cineasta). E Michael Jackson, será que lembrou? Será que Spike Lee ainda lança biografia cinematográfica? Será o marxismo marciano? Marcinho VP, they don't care about us.

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