Este jogo semântico parece
esconder – mas também exibir com um desfoque sob efeito de cócegas – a raiz
mais profunda de uma prática de produção muito miscigenada de dizeres sobre o
mundo, do qual a obra de Kleber parece servir como um exemplo de vísceras
expostas. Ao menos se tomarmos como esse mundo simbólico um palco compartilhado
de encontros politizados – e politizantes – entre formas de ver e dizer. E a
ironia da camiseta toma os contornos de um aceno subreptício, uma falácia que
brinca consigo mesma, um vocês não estão entendendo nada com alguma graça.
Desde que
começou a circular em festivais – mas, especialmente, quando chegou ao circuito
comercial – O som ao redor deu
magnitude mainstream à voz de Kleber, a ideia de voz aqui entendida como um colocar-se perante. Na esfera
acadêmico-historiográfica, seu primeiro longa de ficção passa já a ser um caso
empratileirado entre os grandes ou determinantes. No jornalismo, um noticiável
pop bom de venda. Quando se trata de produção de ideias – e o filme contaminou
de ideias ebulitivas todos os corredores que abriu à sua frente, abriu porque
contaminou e contaminou porque abriu –, podemos suspeitar de certas causas
e consequências:
Parece haver em torno deste filme
o desconcerto daquilo que é situação, situação que se expressa nas formas
recorrentes de fomento e de percepção de imagens e narrativas. Ou, talvez, de
formas de olhar o Brasil, o mundo, o próprio cinema e também as instâncias
expressas do exercício crítico que atravessa essas formas de ver e
descrever(-se). O som ao redor parece
ser maior – e maior – porque, uma vez lançado e visto, instaura um jogo das
cadeiras com as expectativas de certa sensibilidade previsível (lançando mão
aqui da ideia de cinema político de Jean-Louis Comolli). Estão, meses depois,
ainda tentando lidar com isso.
E aí
lembramos novamente da camiseta. Nós, antigos leitores de Kleber, com algum
debate ou discordâncias ótimas, podemos talvez perceber, em seus filmes – e derradeiramente
em O som ao redor –, o desdobramento
de uma postura crítica que se realizava com ferramentas simbólicas muito
familiares de um universo pessoal (porque posto em público) de referências e
métodos. Se fizermos um julgamento que encontra afinidades em leituras de
Jacques Rancière, perceberemos com algum afeto que tanto em seus filmes quanto
em sua bibliografia de crítica de cinema há um esforço ético afim no que se refere
à produção de imagens – sendo palavras e imagens agentes irmãos na produção de
outras palavras e outras imagens.
São sensibilidades que produzem a
ironia um tanto combativa de certas camisetas, uma postura cinéfila (no sentido
de ver, filmes e o que mais quer que seja, como um empreendedor) e uma
percepção do mundo atravessada por essa postura, que carrega a energia canônica
de Antonionis e Leones, mas também palpitações perante imagens incidentes e um
embrulho no estômago frente a certas formas marcadamente predatórias de uma
política de imagens, uma política tantas vezes espetacular.
É só lembrar o cinismo cúmplice
com as formas comuns de produção de imagem jornalístico-televisiva em Recife frio ou a relação
erótico-fetichista como eletroeletrônicos e TVs em Eletrodoméstica: Kleber sai do espetáculo para rir do espetáculo e
voltar ao espetáculo para fomentar um espetáculo mesmo, mas também outro, jogando
os jogos a furtando peças. Afinal, uma camiseta é um refúgio pop com a solidez
urgente e ambivalente de um Che Guevara ou de um Joey Ramone. Foi feita para
ser vestida e para ser vista, assim como uma máquina de lavar roupa.
Essas
manifestações predatórias de mundo, no caso que concerne ao engajamento visível
de Kleber crítico-cineasta, produtor de imagens e produtor de imagens, respectivamente
por texto e por imagem, mas também por imagem e por texto, são as formas
especulativas de um espetáculo bilionário que se expressa por cidades tomadas
por caros cercados privativos apartados de uma ideia mais democrática de
partilha – ou, trocando apenas um termo, imagens
tomadas por caros cercados privativos apartados de uma ideia mais democrática
de partilha. Um sintoma bifurcado de um mesmo estado de mundo capitalista,
sobre o qual o cinema de Kleber (usando editais, textos, câmeras, ou encenações
em diversos dos âmbitos metodológicos de uma política de cinema) vai incidir.
Não à toa,
os efeitos de O som ao redor, uma vez
presentes nas nossas filmografias, sintaxes, prefeituras e jornais, são capazes
de causar incômodo simultâneo (mas nunca desarticulado) nos imaginários pretensamente
progressistas de empreiteiros das cidades e de empreiteiros das imagens, vide a
polêmica, palavra empreiteira, entre o cineasta e um cara aí da Globo Filmes
(ou uma outra, recente, travada com/por um jornalista-blogueiro
pernambucano). São estratégias sempre singulares de acenar uma forma de ver e
dizer, mas aparentadas por um posicionamento contaminado por imagens de um
cineasta que vê e um crítico que faz filmes.
Da primeira vez que vi O som ao redor, há um ano, me senti talvez assistindo a um texto de Kleber, sem me deter a obviedades semiológicas de que um texto era tanto um reduto de imagens compartilhadas quanto o é a imaginação cinéfila. Vi um filme claramente escrito nos parágrafos-esquetes que lhes eram próprios durante o exercício deliberado da crítica, enquanto a empregada sexualmente satisfeita cruzava Maeve Jinkings de bicicleta em uma frase aparentemente escrita por um Robert Altman hesitante. Daí percebia a mesma velha ironia – como a da tal camiseta –, particularmente em um comentário inesquecível e muito delicioso de Kleber sobre Alvin e os esquilos 2 ou 3, no qual crianças eram depositadas num shopping, e lá na tela estavam também as crianças e suas empregadas em seu bambolê-senzala depositadas na imagem. Fosse a comunicação torta dos habitantes da rua uma cena à L’avventura ou mais um esperado caderno de sexta-feira em que uma crítica de cinema foi escrita sobre uma reunião de condomínio feita para o YouTube. O protagonista de Gustavo Jahn, afinal, um personagem largamente apontado como alterego de Kleber pronto para ironizar, com as ferramentas ficcionais de uma empresa cinéfila, um ao redor feito para decantar com verve crítica e um sorriso no canto do rosto.
Depois, vi
o filme mais duas vezes. Por um ano, vez ou outra vinha à mente (vestido com a
camiseta).
A ironia da
camiseta, se formos nos manter na ordem redentora do pragmatismo, é a de que um
filme se dilata e transforma discursos em imagens do circo primeiro que é o
cinema: ser um filme do tamanho de O som
ao redor é abrir corredores em outros espaços equilibristas de mundo
condensado com a grandiloquência de salas de cinema. E o desequilíbrio das
antigas declarações cinéfilas de Kleber não encontra mais um jornal de lides
robotizados como clausura a ser desafiada, mas um catálogo de imagens reiteradas
em circuitos por onde correm também os esquilos, os empreiteiros e o cara da
Globo. Os corredores abertos por O som ao redor deixam como rastro uma estratégia
muito desconcertante (de novo) de certa expressão cinéfila que encontra, na
trincheira de sua própria forma de perceber o mundo – também especulativa e,
por que não, espetacular –, versão particular de um vigor renovado para a arte
crítica.
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